Chamava-se Antónia Adelaide Ferreira, carinhosamente conhecida como Ferreirinha. É o nome mais importante da história da indústria vitivinícola portuguesa.
Apesar do território reduzido, Portugal tem 14 regiões de produção de vinho e um número diversificado de Denominações de Origem Protegida e terroirs com características únicas. Não obstante o enorme sucesso que agora a indústria vive, esteve muito perto da extinção.
A sua continuação deve-se, em grande parte, a uma empresária que corajosamente persistiu num negócio historicamente hostil para as mulheres, Antónia Adelaide Ferreira.
“Era sem dúvida uma mulher simples, que gostava mais de caminhar nas vinhas do que passar a temporada da ópera em Lisboa, que preferia jogar às cartas nas suas quintas do que mover-se entre a alta sociedade da corte, à qual tinha acesso”, diz Natália Fauvrelle, diretora do serviço de museologia do Museu do Douro.
Mas quem era esta senhora?
Visionária, corajosa, independente e empreendedora, Antónia Adelaide Ferreira, carinhosamente conhecida por Ferreirinha, nasceu no Peso da Régua, em 1811. Esta mulher ficou conhecida por se dedicar ao cultivo do vinho do Porto, pelas notáveis inovações que introduziu e por ter lutado contra a falta de apoios dos sucessivos governos.
“Ela teve que reunir todas as suas forças para competir num mundo liderado por homens”, afirma a historiadora Natália Fauvrelle, acrescentando “não podemos dizer que ela nasceu com uma inclinação para fazer tudo isto. A sua vida fê-la ser assim”.
Descendia de uma família local que aproveitou o surto comercial do vinho do Porto após a demarcação pombalina de 1756 para se instalar no negócio da produção e da angariação de vinhos junto de pequenos agricultores. O seu pai, José Bernardo, dividiu a herança da família com um irmão, António Bernardo, em 1808.
O primeiro, mais prudente, consolidou o património que lhe coube em associação com o sogro. Mas foi António Bernardo que revelou uma extraordinária intuição empresarial que o tornou rapidamente num protagonista dos negócios do Douro e do Porto. Deve-se-lhe a construção da Quinta do Vesúvio, fora dos limites da região demarcada nessa altura, o que revela o seu espírito visionário.
Em 1815 começa a exportar vinho para Inglaterra e, apesar de entrarem ilegalmente na zona da demarcação, “os vinhos do Vesúvio eram dos mais caros da época”, afirma Gaspar Martins Pereira, historiador que, com Maria Luísa Olazabal, escreveu a biografia ‘Dona Antónia’.
Em 1827, António Bernardo Ferreira congratulava-se pelo facto de “todos os ingleses” fazerem “grandes elogios” ao Vesúvio, garantindo que “é sem dúvida a obra mais perfeita e mais acabada que haverá em Portugal”.
José Bernardo Ferreira, pai de Antónia, casou-a com um primo, mas este não se interessou pela cultura da família, esbanjando grande parte da fortuna e quando morreu, dez anos depois do casamento, Ferreirinha vendeu os seus bens mais extravagantes, liquidou as suas dívidas e aventurou-se na indústria vitivinícola.
“Tinha um sentido de gestão invulgar para o seu tempo”, afirma Gaspar Martins Pereira.
Com apenas 33 anos, Ferreirinha enfrentou os exportadores de vinho ingleses que se instalaram no Porto e o maior desafio da época para a indústria do vinho, a filoxera.
Quando o inseto surgiu na Europa, devastou as vinhas da região do Douro e na década de 1870, as mesmas estavam maioritariamente destruídas e os seus proprietários arruinados financeiramente. Dona Antónia mudou-se para Inglaterra para tentar perceber mais sobre os meios modernos e eficazes de combate a esta peste, bem como processos mais sofisticados de produção do vinho, tendo implementado novas formas de proteção das plantações do Douro através de técnicas de enxertia importadas de outros países.
Depositou na agricultura todas as suas atividades.
“Ela era uma empresária e agia como uma empresária.”, afirma Natália Fauvrelle.
“Foi muito astuta na forma como geriu as crises. Soube esperar pelas melhores oportunidades e conseguiu aumentar a sua fortuna no momento da crise do oídio e da filoxera”, acrescenta Gaspar Martins Pereira. Apesar de tudo o que estava a acontecer à sua volta, não vendeu uma única pipa de vinho da fortuna do marido e quando o oídio e a filoxera reduziram a capacidade de oferta do Douro, Dona Antónia pôde então realizar enormes mais-valias com os excelentes vinhos que conservava. Depois, com essas mais-valias, comprou azenhas, montes, olivais, casas na Régua, no Porto, em Lisboa e em Vila Real, quintas emblemáticas como a do Porto, dos Aciprestes, do Tua, do Arnoselo, do Mileu, do Pego, do Lourentim, entre muitas outras.
As suas vinhas produziam 1500 pipas de vinho por ano e nos seus armazéns sobravam mais de 15 mil. No seu testamento estão ainda arroladas 24 quintas no Douro, casas e palácios no Porto e em Lisboa, armazéns gigantescos em Gaia, ações de empresas nacionais e estrangeiras.
O seu património estava avaliado em 5,9 milhões de mil réis, o que era “seguramente a maior fortuna do Douro e uma das maiores do país”, considera Gaspar Martins Pereira.
Os seus herdeiros obrigaram-se a respeitar o testamento deixado e criaram a empresa que é a antecessora da actual A. A. Ferreira para manter a unidade possível do império agrário e comercial de Dona Antónia.
Durante três gerações, a Ferreira seria gerida pelos seus sucessores. A sua venda tornou-se um assunto de Estado, com o envolvimento do Governo para evitar que o seu controlo passasse para mãos estrangeiras. Seria vendida à Sogrape, a maior empresa nacional do sector do vinho, com operações em Portugal, no Chile, Argentina.
Dois anos depois, o Vesúvio é comprado pelo grupo de vinho do Porto Symington. Cerca de 140 descendentes tiveram de assinar a transação. “Eram tantos que tivemos de reforçar o catering”, lembra Paul Symington. Herdeiros como Francisco Olazabal ou Eugénia Ferreira, proprietária da quinta de Lourentim, mantiveram na sua posse a herança direta de Dona Antónia. Outro ramo dos Ferreira é dono da conhecida Quinta do Valado.
Quem aprecia o vinho e a cultura do vinho reconhece que o património de Dona Antónia mantém uma singular vitalidade. Os vinhos da Ferreira, a começar pelo Barca Velha, estão entre os melhores do país, no Vesúvio criam-se Porto Vintage da mais alta estirpe, no Valado criou-se uma empresa sólida, com vinhos excelentes, entre os quais um topo de gama chamado Adelaide. Para além das quintas e dos vinhos de hoje, a Ferreira tem um arquivo organizado durante anos por Maria Luísa Olazabal que frequentemente recebe a visita de investigadores nacionais e estrangeiros.